30/04/25

A cidade sitiada (1949), de Clarice Lispector

 

Publicado em 1949, é o terceiro livro de Clarice Lispector, este romance em 12 capítulos marca o amadurecimento de sua poética existencial, experimentando estruturas mais densas de linguagem e introspecção.

São Geraldo não é apenas cenário, mas uma personagem em si, que impõe suas formas e forças sobre a protagonista Lucrécia, figura feminina que, como tantas clariceanas, vive no limiar entre ser e estar, entre o desejo e a resignação.

Lucrécia Neves é uma mulher que vive uma existência aparentemente simples e rotineira. Mas que a move é menos cotidiano do que uma espécie de inquietação silenciosa, um desejo de sentido que nunca se realiza completamente. Vagueia São Geraldo e outras cidades, mas acaba, sendo por si mesma, sitiada, sitiada pela vida, pelas expectativas que lhe foram ou ela mesma que se impôs.

 São Geraldo é uma cidade que está em processo de expansão, e vai transformando ao longo da narrativa, essa mudança material se reflete no interior de Lucrécia. Esse paralelismo entre urbano e íntimo é uma marca da prosa de Clarice Lispector.

Indiretamente, vejo alguns resíduos de Woolf, misturado ao fluxo de consciência, mas Lispector vai além, criando uma linguagem própria, que flerta com o abismo. Não adianta chegar ao texto e querer dominá-lo, o texto clariceano exige um leitor sensível, que não busque lógica.

Pois a prosa de Clarice não trilha o convencional, porém, é um processo de sentir e ir acompanhando a sua subjetiva evolução. No romance “A cidade sitiada” (1949), de Clarice Lispector a vida de Lucrécia Neves se entrelaça com a cidade São Geraldo que está em ampla expansão, um contraponto à sua paralisia interior.

Clarice parece perguntar: quem somos nós diante do tempo que passa, das construções que nos cercam e das emoções que não sabemos nomear?

“A cidade sitiada” (1949) é um livro sobre um espaço geográfico em mutação sobre um sujeito em fratura, deslocando a narrativa tradicional para o espaço da epifania e da experiência interior. Assim, mais do que saber “o que acontece” na história de Lucrécia Neves, importa-nos sentir “como se está sendo”.

A cidade se ergue, mas a alma de Lucrécia Neves parece se encerrar ainda mais. E isso é Belo e, por vezes, bem irônico. É como montar um quebra-cabeça em que faltam peças, e ainda, assim, o quadro final parece fazer sentido.

[...] enxugando o suor da testa com o braço que segurava o prato. Passeando o olhar pelo vasto subúrbio ensolarado. Lá estavam as coisas recortadas, e sem sombras, feitas para uma pessoa se aprumar ao olhá-las. Com o prato na mão, seu instrumento de trabalho, gostaria de exprimir talvez à mãe, por exemplo, como sua filha estava... estava... Olhou um pouco intrigada aquelas coisas iluminadas, ao seu redor, forçando-se agora a exteriorizar, com um pensamento mesmo, o que sucedia fora dela.

Nada acontecia, porém: uma criatura estava diante do que via, tomada pela qualidade do que via, com os olhos ofuscados pelo próprio modo calmo de olhar; a luz da cozinha era o seu modo de ver as coisas às duas horas parecem feitas, mesmo na profundeza, do modo como se lhes vê a superfície.

Bem desejaria contar alga dessa claridade a Ana ou a Perseu. Mas, desamparada, forte, estava de pé. Remoendo sua dificuldade de raciocinar. Naquela deusa consagrada pelas duas horas, o pensamento, quase nunca utilizado, primarizara-se até transformar-se num sentido apenas.

Seu pensamento mais apurado era ver, passear, ouvir. Mas seu tosco espírito, como uma grande ave, se acompanhava sem se pedir explicações. LISPECTOR, Clarice. 1998, p. 94 e 95

Percebe-se que o tempo se dilata e se encolhe, conforme o estado de espírito de Lucrécia Neves. Clarice, não nos oferece respostas fáceis nem finais felizes. O que nos oferta é o espelho e este nem sempre reflete o que desejamos ver. O humor surge aqui e ali, não como alívio cômico, mas como estranheza, quase uma gargalhada deslocada no meio de um velório.

Com A cidade sitiada (1998), Clarice Lispector nos convida a refletir sobre a condição feminina, a identidade e o silêncio, esse grande ruído da existência.

 

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 Referência bibliográfica do livro resenhado

LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1998 Lispector, p. 94 e 95


17/02/25

Toda mulher, segundo Wolf, precisa de um teto todo seu

 

Virginia Woolf, em “Um Teto Todo Seu”, apresenta uma reflexão envolvente sobre a    condição das mulheres como escritora, como intelectual, no mercado editorial e o mercado em geral de trabalho e na sociedade.

 Trata-se de um ensaio que aponta duas condições para que as mulheres possam criar sua arte, sua produção literária: independência financeira e um espaço próprio, ou seja, um “Teto todo seu”.

 
Woolf argumenta que, historicamente, as mulheres foram privadas não só de recursos, mas também do direito de expressar seu potencial criativo, e essa carência se reflete na escassez de obras literárias de autoria feminina.

O ensaio “Um teto todo seu” faz análises críticas e fatos históricos dissertando como seria a produção de escritora se esta tivesse um espaço, um cantinho só dela, longe dos olhares críticos e das amarras patriarcais. Entregue totalmente a intelectualidade.

Se você já se sentiu sufocada pela falta de espaço, seja na sua criatividade ou no seu próprio lar, então você se identifica com as ideias de Woolf, que vale-se da metáfora de um teto para criar um símbolo da liberdade artística feminina.

O ensaio Virgínia Woolf nos leva pelo caminho das análises literárias somado a considerações filosóficas sobre o papel da mulher na história da cultura ocidental. Utilizando uma narrativa cativante para demonstrar que a ausência de um espaço próprio não é apenas uma questão material, mas um obstáculo que impede o florescimento do talento intelectual feminino.

Virgínia Woolf imagina como seria a vida da irmã perdida de Shakespeare uma brilhante escritora condenada à obscuridade por não ter acesso a um ambiente propício para a criação. Essa hipótese nos faz refletir sobre as oportunidades desperdiçadas e os sonhos adormecidos de tantas mulheres talentosas.

A crítica de Woolf é perspicaz e, mesmo que envolta em uma linguagem poética, não perde o foco na urgência de transformar essa realidade. É um chamado à ação para que, hoje, possamos reescrever essa história, dando voz e espaço a todas as mentes criativas que, por tanto tempo, ficaram à margem.

A estrutura de “Um Teto Todo Seu” é tão inovadora quanto o tema que aborda. Com uma linguagem que transita entre a erudição e a conversa íntima, Woolf nos convida a questionar as estruturas sociais que mantêm as mulheres presas a papéis limitadores.

Demonstra, de forma crítica, que a arte e a literatura só podem prosperar em um ambiente de liberdade e autonomia, onde o gênero não seja uma barreira para a expressão.

Ao mesmo tempo, a autora não deixa de usar o humor para suavizar os conceitos pesados que aborda, afinal, quem nunca imaginou ter um “teto” próprio, longe dos compromissos e cobranças do dia a dia, para dar asas à imaginação?

Essa crítica carregada leveza torna a obra atemporal e, surpreendentemente, um convite à reflexão pessoal para todas nós, independentemente do gênero.

Ao ler Woolf, você se sente inspirada a buscar seu espaço, seja na escrita, na arte ou na vida, e a lutar por uma sociedade que reconheça o valor de cada indivíduo.

“Um Teto Todo Seu” é mais do que um ensaio sobre a situação das mulheres; é um manifesto sobre a importância do espaço literal para a criatividade e realização pessoal.

Virginia Woolf utiliza sua pena como uma ferramenta de crítica social, abordando as limitações impostas pelas convenções patriarcais, abrindo caminho para um futuro, onde o talento feminino possa enfim entrar em cena sem restrições.


30/01/25

Cartas à Rainha Louca, de Maria Valéria Rezende (2019)

       

     Em 1789, no século XVIII, Isabel, uma mulher branca, porém pobre, que aprendeu a ler na clandestinidade e por ser acompanhante da filha do patrão, Blandina. Está presa, enclausurada, em um Convento em Olinda, Recife e resolve escrever uma série de cartas direcionada à Rainha de Portugal Maria I, contando sua história e sua amada Blandina.
    Isso mesmo, hoje, vamos falar sobre o livro "Cartas à Rainha Louca" (2019), de Maria Valéria Rezende. Um romance epistolar (escrito em formato de cartas) que aborda as desigualdades de gênero e situações as quais as mulheres estavam sujeitas a passar na época do Brasil colônia.

   Li esse livro em 2024, por causa do Grupo de Pesquisa Grupo de Estudos Literatura, Mulheres e Escrita de Si-Gelimes que participo e foi uma surpresa, pois ainda não conhecia a escrita da Maria Valéria Rezende.

  "Cartas à Rainha Louca" é um livro brasileiro, de Maria Valéria Rezende (2019) e nos apresenta a Isabel das Santas Virgens, uma mulher que escreve de uma cela do Convento, onde foi injustamente enclausurada. As cartas são destinadas à Rainha Maria I, conhecida como a Rainha louca. 

 Nesta série de cartas, que começa em 1789 e termina 1792, Isabel conta toda a sua história e tudo que viveu e porque está presa em um Convento aguardando seu julgamento que será na Corte de Portugal. 

 Assim, Isabel crítica a sociedade brasileira, sobretudo a situação imposta as mulheres que foge aos padrões impostos a elas. Faz um apelo para que a Rainha olhe a situação por seus súditos, especialmente as súditas que estão na colônia brasileira. 

 Isabel é uma mulher branca, filha de funcionários de engenho, por isso pobre, cai nas graças da mãe de Blandina e passa a ser dama de companhia de Blandina, assim, passa a viver na casa grande, lá consegue aprender a ler e a escrever, com um padre que cuidava da Educação Formal de Blandina. Isso será muito importante no futuro quando Isabel precisará proteger Blandina e se proteger.

Já Blandina foi criada para fazer um bom casamento, coisa que Isabel não tinha esperança. Sua esperança era quando Blandina casasse a levaria junto. Blandina cai na lábia do sedutor Diogo Lourenço, acaba grávida, o pai a manda para uma fazenda distante para esconder a gravidez da sociedade hipócrita da época.

Quando a criança nasce, ele enclausura Blandina no Convento do Desterro de Salvador, junto com duas escravas. Isabel não vai junto. Mas. Pela primeira vez, ela usa todo seu aprendizado de saber ler e escrever, algo raro, em uma colônia, onde praticamente todos eram analfabetos, ainda mais sendo uma mulher, para ir para o convento cuidar de Blandina.

Assim Isabel falsifica a assinatura do pai de Blandina em uma carta. E lá aprende as liturgias de uma vida religiosa. Quando Blandina, morre Isabel é convidada a sair do convento. Isabel faz doação das duas escravas de Blandina para o Convento e segue sua vida, indo para Vila Rica, em Minas Gerais. 

Lá Isabel de veste de homem para ser aceita na sociedade dominada por eles. E com isso consegue sobreviver falsificando documentos para quem lhe pagasse. Isabel é descoberta e é assaltada e abandonada pelo bando. É quando ela decide se desfasar de beata e funda uma casa para receber mulheres como ela, branca, mas pobre, por isso solteira. Sendo denunciada por desobediência à Coroa Portuguesa, porque não podia criar um convento clandestino para freiras. 

Por isso, é presa em uma cela para ser levada à Portugal para ser julgada pelo seu crime. É nesta cela que Isabel escreve uma série de quartas cartas para Maria I, a Rainha Louca de Portugal. 

 Essas histórias contadas nas “Cartas à Rainha Louca” passaram pelos principais aspectos de um Brasil, ainda colônia de Portugal: tais como: Colonização, Monarquia, Patriarcado, Racismo, Religião, Escravidão, Economia Essas cartas são uma janela para compreendermos a própria história de Isabel e das mulheres no Brasil em uma personagem que carrega em suas palavras uma mistura de coragem, dor e esperança. 

A narrativa é um emaranhado de memórias, confissões e denúncias sociais, a cada página. Embora o enredo esteja centrado nas cartas de Isabel, a história do livro vai muito além das paredes do convento. Maria Valéria Rezende através dos lábios de Isabel usa o recurso de rasura como metodologia de narração, quando esta faz uma crítica muito exagerada, é como-se a palavra fugisse ao controle, de quem está escrevendo, sendo assim, está precisa ser censurada, calada, rasurada. 

Para fazer uma crítica contundente às desigualdades, sociais e de gênero e às estruturas sociais como patriarcado, Monarquia, Religião que, ainda hoje, aprisionam mulheres de diversas formas. 

Maria Valéria Rezende nos lembra que o silenciamento é uma forma de violência, e que a escrita seja em cartas, livros ou redes sociais é uma forma de resistência.

"O silêncio é cúmplice do poder, e a palavra é sua maior rival." 

Cartas à Rainha Louca é um livro que não se limita a contar uma história; ele nos provoca, nos desconforta e nos inspira. Maria Valéria Rezende constrói uma narrativa que é, ao mesmo tempo, um retrato histórico e um apelo por mudança.

Leia:

Cartas à Rainha Louca, de Maria Valéria Rezende


Cartas à rainha louca em vídeo

Lembre-se: O Poeta está certo. Os outros que estão errados.